Prof. Lucas RC Oliveira
12 de novembro de 2021
Entre as muitas polêmicas pedagógicas envolvendo a Educação Infantil, nenhuma está mais em pauta do que o uso de equipamentos eletrônicos pelas crianças pequenas, ainda mais nestes tempos pandemicos onde a sociedade se abrigou por detrás das telas de computadores e celulares para prosseguir de alguma forma com suas vidas. Com as crianças não foi diferentes, muitas impossibilitadas do convívio com escolas e creches, com parques e playgrounds fechados e com boa parte delas enclausuradas em apartamentos ou em casas sem quintais, recorreram aos eletrônicos como taboa de salvação, seja para espantar o tédio, seja para brincar, estudar e matar a saudade de parentes e amigos. Isso acabou por gerar uma superexposição a esses meios na grande maioria das camadas e grupos sociais, contudo o que torna as crianças tão vulneráveis é o fato de serem indivíduos em formação, e essa falta prolongada de convívio físico aliada a exposição diária aos meios eletrônicos podem ter consequências que a sociedade ainda não tem respostas.
Aos poucos a vida vai voltando ao normal (dentro do possível) as escolas voltaram a receber os alunos a princípio de forma escalonada e agora no início do mês passou a contar com 100% dos seus discentes.
Momento oportuno seria esse para a sociedade debater sobre o uso pedagógico dos recursos de TICs (Tecnologia da Informação) dentro das instituições de Educação Infantil. Subsídios teóricos e técnicos não faltam, no campo da pediatria e psicologia já existem posições bem sólidas, não que por vez discordantes, contudo na área pedagógica são raros os estudos envolvendo crianças pequenas e experiências com os pequenos são muito esparsas e por vezes genéricas ou não suficientemente detalhadas para compor no atual momento uma literatura especializada no tema.
O antagonismo na área por vezes chega a beirar os humores das paixões, chegando a possuir lados com visões em extremos opostos, como o do professor Valdemar Setzer, docente da USP do departamento de informática, muito enfático sobre os malefícios dos equipamentos eletrônicos na formação dos cérebros infantis:
Não tenho dúvida de que computadores aceleram o desenvolvimento das crianças. Isto está bem claro: forçando um ambiente virtual, uma linguagem formal (quando se dá ou se escolhe um comando de um software qualquer) e um pensamento lógico-simbólico, os computadores acabam forçando crianças e adolescentes a comportarem-se física e mentalmente como adultos. É absolutamente antinatural para uma criança ficar sentada por longos períodos de tempo, se ela não tem possibilidade de imaginar ou fantasiar interiormente (o que aconteceria se ela ouvisse um conto de fadas por exemplo). p.144,2005
O professor em suas publicações ainda destaca os problemas relacionados a dessensibilização infantil em relação a violência, os problemas causados pelo sedentarismo que o uso de meios eletrônicos acaba induzindo principalmente nas crianças que sem supervisão na maioria das vezes não tem controle sobre o tempo de uso. Na sua visão a adoção precoce das TICs não seria um benefício mais um grande perigo e risco na formação psíquica e física das crianças e adolescentes e que a maioria dos discursos a favor da adoção de computadores e das novas tecnologias como potencializadores da aprendizagem ou estão embasados em premissas ingênuas e sem teor crítico e científico ou cercada por interesses mercadológicos que visam a aquisição e ampliação de um grande mercado consumidor.
Do lado contrário temos os adeptos do uso de computadores e meios eletrônicos desde a mais tenra idade, este posicionamento pode ser encontrado sob diversas vozes e ações, desde iniciativas oficiais do governo como o programa do Governo Federal, Proinfo que visiva no ínicio dos anos 2000 levar a informática e a conexão a internet as escolas brasileiras, mesclando com isso iniciativas de capacitação docente para a então nova tecnologia que surgia.
Temos a corrente acadêmica liderada pelo sul africano Seymour Papert, antigo colega de Piaget que nos anos 60 desenvolveu nos laboratórios do MIT (Massachusetts Institute of Technology) nos EUA a linguagem de programação LOGO destinada a ensinar as bases da lógica de programação e do pensamento computacional as crianças. Papert e seus seguidores como o americano Mitchel Resnic seu ex aluno e hoje também professor no MIT, criador da linguagem de programação em blocos SCRATCH, considerada a sucessora da linguagem LOGO se definirem como “construcionista” uma vertente do construtivismo piagetiano que foca na adoção dos computadores e da linguagem da informática para potencializar o desenvolvimento infantil, principalmente ligados a áreas como lógica, abstração e pensamento matemático, aliás sendo essa visão que o professor Setzer mais crítica pois estaria a adiantar ou a impor um pensamento que não seria naturalmente atribuído a crianças.
Ainda podemos citar a quantidade gigantesca de iniciativas comerciais para publicação de softwares e projetos de robótica educacional visando catalisar ou potencializar a velocidade e abrangência dos meios eletrônicos para a aprendizagem das disciplinas tradicionais.
Contudo se verificarmos o debate usando um recorte estritamente relativo à Educação Infantil, verificamos uma grande escassez de estudos, debates e principalmente iniciativas na adoção dessas tecnologias, escassez não por preocupação com o bem estar dos pequenos mas sobretudo por parte da falta de investimento dos governos e mantenedores de escolas privadas e confessionais. Do ponto de vista legal a recém promulgada BNCC ( Base Nacional Comum Curricular) embora trate a adoção das novas tecnologias como um tema central, principalmente no Ensino Fundamental, não dedicou uma área do conhecimento específica para este, o tratando como tema transversal em toda a prática educacional. Já na Educação Infantil o tema embora seja tratado, não teve aprofundamento, sendo lembrado mais como uma característica do mundo moderno e que como tal deve de alguma forma ser trabalhado pela instituição. Publicações acadêmicas sobre o tema como estudos de caso ou revisão de literatura (praticamente inexistente, principalmente no Brasil) são raríssimas e quase sempre recorrem ao uso de determinado programa por crianças maiores entre 4 e 5 anos.
As grandes tendências na vanguarda da Educação Infantil, embora não apresentem uma postura tecnofóbica a ponto de tratar computadores como tóxicos a infância, preferem se concentrar em princípios como o contato da criança com a natureza, respeito a suas necessidades biológicas de movimento e descoberta, evitando que a Educação Infantil se torne uma copia do Ensino Fundamental com carteiras enfileiradas, disciplinas e por vezes até provas classificatórias disfarçadas de avaliação diagnóstica de escrita e leitura.
Ações como o do Instituto Alana e sua iniciativa Criança e a Natureza que visam integrar o cotidiano infantil, principalmente dos pequenos moradores de grandes centros urbanos ao convívio com espaços naturais e a ter uma educação com mais harmonia às necessidades infantis. Mesmo iniciativas de grande prestígio mundial na área da Educação Infantil como as das escolas italianas da região de Reggio Emilia embora sejam adeptas das novas tecnologias, não as censurando-as não as colocam de maneira alguma como protagonistas neste período da vida da criança.
Aparentemente as tendências educacionais brasileiras mesmo que de maneira tímida apontam para essa direção na BNCC temos o seguinte trecho:
Essa intencionalidade consiste na organização e proposição, pelo educador, de experiências que permitam às crianças conhecer a si e ao outro e de conhecer e compreender as relações com a natureza, com a cultura e com a produção científica, que se traduzem nas práticas de cuidados pessoais (alimentar-se, vestir-se, higienizar-se), nas brincadeiras, nas experimentações com materiais variados, na aproximação com a literatura e no encontro com as pessoas.
Notasse que o redator usou o termo natureza em primeiro lugar, e tais escolhas em documentos oficiais de caráter tão abrangente não se dão ao acaso ou de maneira despercebida.
Navegando por esse mar de antagonismos e debates acalorados, o uso de computadores e outros dispositivos eletrônicos fica numa zona cinzenta entre o ideal e o indesejável; -"Seria muito bom, mas não temos dinheiro para isso!
Não se trata de erguer uma falsa muralha, ou criar dois antagonistas inconciliáveis, mas de colocar cada proposta e visão de mundo no seu devido local.
É inegável o papel da natureza no desenvolvimento infantil e como a falta de contato com a mesma é prejudicial. Crianças que possuem rotinas mais ativas, amplo contato com meios naturais e liberdade de movimentos possuem maior resistência imunológica a alergias e pequenas infecções, tem seu desenvolvimento motor mais aprimorado, questões como equilíbrio, gestão de risco, limites, autoconfiança são bem mais desenvolvidos em crianças ativas do que aquelas cercadas nas bolhas de concreto dos apartamentos e gramas plásticas das escolinhas urbanas.
Pelo contato prolongado com ambientes naturais não organizados, a criança desenvolve seu senso de perigo e equilíbrio para se locomover num ambiente onde é ela que tem que se adaptar ao invés da artificialidade de espaços preparados a plástico de borracha e que em nome de uma pretensa segurança compromete e engessa o desenvolvimento pleno infantil.
Neste contexto poderíamos encarar os dispositivos eletrônicos como o antípoda perfeito da infância, já nada que nada mais artificial e sedentário do que um jogo eletrônico, que condiciona o indivíduo ao ápice da imobilidade e mestalmente o bombardeia com uma corrente constante de estímulos artificiais chegando em casos extremos ao vício.
Obviamente se elevado ao extremo e deixadas sem supervisão as crianças tendem a ter um comportamento exagerado no uso de tais dispositivos, não controlando seu tempo de uso e em casos mais sérios desenvolvendo obesidade e problemas na locomoção e equilíbrio.
Contudo não podemos negar que esses equipamentos estão no mundo, acessíveis hoje em dia até as camadas mais populares, a internet caminha para onipresença, ficaria muito difícil senão impossível afastar as crianças desse mundo.
Não se trata apenas de embotar as crianças com lógica de programação entre chupetas e mamadeiras, ou transformar os processos educativos na pré-escola como uma arremedo mambembe da franquia Star Trek onde as crianças desde muito cedo já realizavam algoritmos para manobras espaciais ou viviam e cresciam entre a fuselagem de cargueiros e naves espaciais sem nunca colocarem os pés em um planeta natural a não ser por meio de projeções holográficas, coisa que aparentemente estamos caminhando a largos passos ( o holograma é claro)
A questão aqui é muito mais de sensibilidade e conhecimento do professor sobre a necessidade dos alunos. É natural o encanto dos pequenos com os dispositivos eletrônicos, afinal eles foram feitos para isso, não se trata de uma pretensa disposição natural ou geracional para uso destes, afinal eles foram planejados, projetados e construídos para isso, para promover a facilidade de uso, principalmente entre as crianças, tudo em nome de um mercado cada vez mais amplo, mercado que aliás é um dos mais lucrativos do mundo. Contudo manter as crianças em outra bolha, protegendo-as dos malvados “trustes corporativos” da indústria da mídia, é no mínimo tão incoerente como privar uma criança de antibióticos em nome de processos mais naturais de cura em caso de uma infecção grave.
Por mais afastada que a criança esteja deste mundo seja, por motivos financeiros, geográficos ou ideológicos, os meios eletrônicos vão acabar esbarrando em seu cotidiano, a pandemia só escancarou isso, e mesmo pais mais arredios tiveram dentro do possível a se adaptar às novas necessidades se quisessem continuar com a educação dos seus filhos.
O que a Educação Infantil precisa é de um amplo debate, despojado das paixões e expectativas ingênuas, a tecnologia nem é a grande tábua de salvação dos processos educativos nem tão pouco a causa dos males da sociedade no século XXI.
Cabe ao professor dentro de uma perspectiva mais humanista de educação, perspectiva que visa uma educação integral do ser humano, tornando-o consciente do seu corpo, limites e possibilidades, consciente de suas responsabilidades com os semelhantes e consciente de seu papel no mundo. E essa consciência esbarra sem sombra de dúvidas nas TICs, ter responsabilidade no uso, conhecer os perigos e problemas fazem parte do desenvolvimento da criança neste segundo decênio do século. E esse uso responsável só é possível com um envolvimento maior entre família e escola, família que por vezes parecem estar perdidas no meio de tantos desafios e utilizam desde a mais tenra idade os efeitos calmantes e atrativos dos vídeos e posteriormente dos jogos eletrônicos. Prática essa condenada por muitos especialistas no desenvolvimento infantil e pediatras.
As crianças devem se desenvolver com toda a liberdade possível, liberdade de movimento, de escolhas e de conhecimento. Embora seja uma construção longa que provavelmente os pais só veram o resultado na vida adulta dos filhos é de suma importância que estes vivenciam de forma supervisionada essas experiências virtuais.
MEC, Proinfo - Informática e Formação de Professores - Vol 1, Ministério da Educação, Brasil, 2000
SETZER, Valdemar: Meios Eletrônicos e a Educação: uma Visão Alternativa, São Paulo: Editora Escrituras, 3a. edição 2005
INSTITUTO ALANA, Criança e Natureza, acessado em 19 de novembro de 2021, disponível em: <<https://criancaenatureza.org.br/>>
PAPERT Seymour, A Máquina Das Crianças, Porto Alegre, RS, ArtMed Editora, 2004